A passagem dos dois anos de mandato de João Lourenço como presidente da República foi assinalada com variados artigos publicados nos vários meios de informação e nas redes sociais. Se existiram análises ponderadas e equilibradas, o facto mais relevante foi a crítica generalizada contida em muitos dos textos.
Por vezes, pareceu que se tinha aberto um concurso para eleger quem mais atacava o presidente no Palácio da Cidade Alta. E, no entanto, este fenómeno de crítica não é de estranhar: ele não resulta de qualquer sentimento fervilhante entre a população, antes demonstra que, finalmente, a oposição interna do MPLA se está a organizar.
A verdade é que os principais críticos de João Lourenço não estão na UNITA, não estão na sociedade civil (em ambos os casos, existe crítica inteligente, mas também expectativa). Os principais críticos de João Lourenço estão no seu próprio partido, e são estes que se articulam para a sua defenestração. Depois de terem superado o choque inicial, os antigos dirigentes todo-poderosos que foram cilindrados pelas iniciativas de João Lourenço conseguiram finalmente organizar-se a partir de capitais estrangeiras, começando um movimento de contra-ataque com forte destaque nas redes sociais.
É evidente que, quando não consegue focar-se e seguir um rumo definido e claro, João Lourenço acaba por ajudar estes movimentos de oposição interna. O presidente da República assemelha-se a um piloto de avião que acaba de levantar voo com os motores na máxima potência, mas que, no movimento de elevação até à altura adequada e à velocidade de cruzeiro, vai perdendo potência e dando demasiadas curvas, fazendo com que o avião demore mais tempo a ganhar altitude e a fugir da zona de turbulência.
Na realidade, as dificuldades do presidente não devem surpreender. A chamada transição interna, ou evolução na continuidade, é sempre uma tarefa quase impossível, sobretudo se tentada de forma ampla e sem concentração de forças. Vêm-nos à mente dois exemplos de tentativas falhadas de transição interna de regimes, isto é, regimes que se tentam reformar por dentro, através dos seus próprios quadros e lideranças.
O primeiro exemplo é o do Portugal de Marcelo Caetano, antes do 25 de Abril de 1974. Como se sabe, desde 1926, Portugal vivia debaixo de um regime autoritário, liderado a partir de 1933 por Salazar. Em 1968, Salazar cai da cadeira no forte do Estoril, bate com a cabeça no chão e fica progressivamente incapacitado. Sucede-lhe um membro preeminente do regime, antigo herdeiro político do ditador português, que depois se tinha distanciado e feito uma “travessia do deserto”. Era Marcelo Caetano. Caetano inaugura a chamada “Primavera Marcelista”, uma abertura política cheia de promessas de prosperidade e liberdade para os portugueses, abrindo esperanças renovadas para o fim das lutas nas então colónias. Dura pouco. Os próceres do regime, antigos fiéis de Salazar, não deixam Caetano avançar, este hesita, tergiversa, inicia ziguezagues e acaba deposto pela Revolução do 25 de Abril, exilando-se no Brasil, onde morre amargurado com tudo e todos. A tentativa de reformar o regime salazarista por dentro falhou.
Mais dramático ainda é o exemplo de Mikhail Gorbachev. Nos anos 80, o líder da União Soviética, superpotência que disputava com os Estados Unidos o domínio do mundo, apercebeu-se do declínio inexorável do seu país e do Partido Comunista que o dirigia. Tentou também uma transição assente numa abertura política e económica, as chamadas Glasnost e Perestroika. O entusiasmo foi grande, o Ocidente delirou com o novo vento refrescante que soprava de Moscovo. Contudo, a linha dura do Partido Comunista e do KGB (polícia secreta) reagiu com um golpe de Estado, que, embora falhado, enfraqueceu Gorbachev, o qual acabaria por ser afastado, aproximadamente seis anos depois de ter assumido o poder (os mesmos seis anos durou Marcelo Caetano). O resto da história é bem conhecida. A União Soviética desagregou-se e Gorbachev acabou a fazer anúncios publicitários para a multinacional francesa de malas Louis Vuitton. E a Rússia tem agora Putin, o determinado e sagaz ex-oficial do KGB. Ambas as histórias são casos de transição falhada, em que os esforços reformistas internos não conseguiram romper com o passado e com as oposições internas.
Alguns optimistas, e o próprio João Lourenço, gostam de recorrer ao exemplo oposto de Deng Xiaoping, o bem-sucedido reformador da China que lançou as bases para o acelerado desenvolvimento chinês. A questão é que Deng Xiaoping não quis reformar tudo. Focou-se num ponto: a liberalização elástica de economia, adoptando um modelo heterodoxo de desenvolvimento, não uma receita de manual escolar americano. No entanto, ao mesmo tempo, manteve um férreo controlo sobre o Partido Comunista da China. Não foi um reformador de regime, nem efectuou qualquer transição política. Foi um pragmático da economia.
Da realidade actual de Angola e das lições históricas do passado surgem algumas recomendações para que João Lourenço possa superar os obstáculos. Não se pode pensar que tudo muda de um momento. Lourenço deve focar-se e dedicar-se a dois temas interligados: o combate à corrupção e o crescimento económico. Mas o combate à corrupção deve assumir uma dinâmica própria, através da criação de uma task force de polícias, serviços de inteligência e procuradores que façam investigações alargadas e abrangentes e produzam acusações. Não tem sentido esta espécie de fragmentação que se vive hoje, um processo aqui, outro ali, umas trapalhadas jurídicas pelo meio com acordos mal-explicados. Porém, o combate à corrupção é um primeiro passo para alcançar o objectivo maior: o crescimento económico, a criação de emprego, e mais dinheiro para todos. Adaptando as lições dos países asiáticos à realidade angolana, o presidente tem de assumir que as suas forças se centrarão na promoção do crescimento justo e equitativo da economia. Não tem de querer tudo, tem de fazer uma opção pelo progresso.
Deve ser este o grande objectivo do restante mandato de João Lourenço. Desenhar um futuro próspero para Angola e caminhar a direito nessa direcção, caso contrário perder-se-á nas armadilhas da transição.
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